Aquele poderia ser mais um dia de aula na faculdade de medicina, não fosse o aprendizado que dele tirei...
A tarde se iniciava calorosa, quando, juntamente com outros colegas, adentrei o ambulatório do hospital universitário a que me vinculava. Iríamos acompanhar consultas na área da psiquiatria.
A preceptora era conhecida nossa, pois, além de já nos ter ministrado aulas teóricas, liderava importantes pesquisas na área da saúde mental dentro daquela academia. Contudo, embora anteriormente já tivéssemos a ocasião de observá-la na excelência científica, particularmente, estava ansioso para vê-la atuar na arte médica.
Isto porque, durante o curso médico, tive a oportunidade de observar – infelizmente, diga-se de passagem – exemplos variados de dissociação entre o discurso e o fazer. Renomados professores nos falavam de princípios bioéticos e, na contramão disto tudo, faziam uma medicina precária nesse aspecto. Outros versavam sobre a imperiosa necessidade de se olhar o paciente como um todo e, no cantochão de suas consultas, realizavam uma paródia patética de um ver holístico, fragmentando muito mais do que integrando.
Todo este cenário, portanto, levava-nos – pelo menos a mim – à moderada ansiedade – e, de quando em vez, pequena desmotivação, sejamos honestos – diante das diversas aulas práticas de que participávamos.
Os minutos, entretanto, não se fizeram muito céleres e, rapidamente, pude perceber que aquela tarde seria diferente.
– Como estás? Tens-te sentido mais disposta?
– Ah, doutora! Depois que comecei o tratamento com a senhora, sinto-me melhor. Porém, percebo que a melhora inicial foi maior e que nos últimos tempos não consigo progredir tanto...
– Tens ido à psicóloga?
– Não. Onde eu moro, só há isto uma vez ao mês, e quando há! E a cidade mais próxima fica distante. Para conseguir um transporte é uma dificuldade!
– E as atividades? Estás trabalhando?
– Também não. É muito difícil conseguir algum trabalho por lá...
– Tens conseguido, no entanto, realizar algum lazer?
– Doutora, para ser sincera, em minha cidade não há o que fazer! Mesmo assim, tenho conseguido sair de casa e andar conversando até a pracinha com algumas amigas.
– E os estudos?
– Graças a Deus consegui acabá-los. Inclusive, eu vim prestar vestibular aqui nesta universidade. E a senhora sabe que eu passei?
– Que maravilha! Qual curso?
– Pedagogia.
– E quando começaram as aulas?
– Na verdade, eu só passei, mas não fiz minha matrícula...
– Como foi isto?!
– Não tinha dinheirinho..., além do mais, como eu iria conseguir me sustentar?!
– Por que não me procuraste? Por que não vieste aqui? Isso era o de menor importância! O mais difícil era passar e você conseguiu, apesar do seu estado de saúde. Você deveria ter vindo, nós procurávamos uma solução, encontraríamos uma forma juntas... E não há algo que nós possamos fazer ainda?!
O interesse da médica ia por outros aspectos além dos sintomas e das posologias
Tratava-se de uma jovem passando pelos tristes vales da depressão. O tratamento psiquiátrico lhe havia trazido muito benefício, mormente porque aos psicofármacos foram adicionadas gotas medicinais de atenção por nossa professora. Entretanto, para ir profundamente às raízes do problema era preciso mais.
Daí, o interesse da médica por outros aspectos que iam bastante além dos sintomas e das posologias. E, por isto, em seu semblante havia o sentir real, a empatia verdadeira, a profunda preocupação com a vida daquela moça. Enquanto que, no olhar desta, a emoção de se sentir acolhida.
O curso, é bem verdade, não tinha mais como ser feito. A vaga já tinha sido ocupada por outra candidata. Um outro alguém festejava a esperança, enquanto nossa paciente não sabia dimensionar ao certo a importância que teria sido aquela atividade em sua vida e, consequentemente, em sua saúde.
Sem que nossa preceptora se desse conta, porém, aquele seu movimento de interesse havia mobilizado a vida daquela jovem. E, energia acionada, certamente, no futuro, outros caminhos se abririam no horizonte daquela mulher. A partir dali, ela deixaria de ser uma paciente de sua doença, transformando-se, paulatinamente, em agente de seu bem-estar mental.
Aquela cena simples deixou-me forte impressão.
Com a convivência, no entanto, outras se somaram.
No seu consultório, um armário guardava remédios que eram doados àqueles que mais necessitavam. A nobre médica guardava várias amostras grátis – e quiçá comprava tantos outros – e as distribuía como verdadeiras sementes de esperança.
Em algumas ocasiões, discretamente saía de suas mãos o dinheiro da passagem para que os pacientes não deixassem de cuidar da saúde por falta de condução.
Oportunidades outras, o número de consultas era aumentado por necessidade de mais alguém ser atendido.
Em determinado momento, um paciente padecia grave moléstia psiquiátrica. O tratamento fê-lo melhorar sobremaneira. Contudo, porque faltasse um algo a mais, estando ele desempregado, nossa preceptora arrumou alguns contatos e lhe conseguiu um trabalho, já que o labor dignifica o ser, melhorando, inclusive, as perspectivas de saúde. Especialmente, no caso em questão.
– Esta não é a função dela! O sistema único de saúde brasileiro, ou então o governo, é que tem esta obrigação! – dirão alguns.
Por certo que sim.
– Ela não precisava fazer tudo isto! Ela já ajuda, contribuindo com a parcela de impostos que lhe compete pagar ao estado! – argumentarão tantos outros.
Sem dúvida.
Ela, porém, conseguiu ver além; aprendeu a fazer um pouco mais; conquistou a capacidade de se projetar no local do outro; se deu conta que não se pode esperar somente...
Para muitos, ela é apenas conhecida por seus artigos científicos.
Para as pessoas que ela atende, entretanto, ela jamais vai ser esquecida por seus gestos nobres de humanidade.
Intimamente, pensava: como argumentar diante
de um delírio coletivo?
de um delírio coletivo?
Na dinâmica da saúde, muito se tem escrito sobre a medicina da alma.
Religiosos teimam em brigar com a ciência, defendendo exclusivamente seus métodos. Cientistas, a seu turno, insistem em ignorar a realidade transcendental.
Nesta perspectiva, novas técnicas surgem – às vezes, um tanto quanto estranhas – prometendo a cura, a pretexto de serem espirituais, comprometendo, vez que outra, a credibilidade da possível união entre a medicina do corpo e a da alma.
Certa feita, estava eu a desenvolver atividades no âmbito da Doutrina Espírita, quando me levaram, muito entusiasmados, a conhecer determinada pessoa.
Desejavam apresentar-me nova ferramenta da espiritualidade que eles estavam desenvolvendo nos mecanismos de assistência aos Espíritos sofredores e obsessores.
– Estamos, no momento – dizia-me mais ou menos nestes termos –, indo um passo à frente na nossa abordagem. Agora, realizamos cirurgias no perispírito (1) dos seres. Temos conseguido modificar o DNA e os genes espirituais. Com isto, mudamos a destinação, bem como a arquitetura das obsessões.
Enquanto os companheiros versavam empolgados, só me restava balançar a cabeça como um calango, pensando – Meu Deus, abençoe!
E porque insistissem para que eu participasse pessoalmente de uma das reuniões e verificasse a veracidade das narrações feitas, só me coube responder reticente:
– Vamos ver a nossa possibilidade... – enquanto, intimamente, pensava: como argumentar diante de um delírio coletivo?
Mesmo sem desejar, entretanto, em outras oportunidades, em outras instituições que me convidavam, tive chance de ver – porque eram feitas em público, depois de nossas palestras – tratamentos de cirurgias espirituais que, embora não fossem exatamente como a descrita acima, guardavam uma desajeitada semelhança.
Questiono-me, portanto, o que seria uma medicina da alma?
E, invariavelmente, não consigo ter o exemplo das técnicas de DNA espiritual como resposta. Concomitantemente, porém, a imagem de minha professora ganha espaço.
Como cuidar da alma, senão...
Fazendo além do que se é obrigado – isto é andar dois mil passos.
Olhando além de um cérebro ou de um ser espiritual em desalinho – isto é ter olhos de ver.
Doando e se dando mesmo que não seja em um templo ou em uma obra social – isto é caridade.
Colocando-se no lugar do outro – isto é amor.
Foram justamente estes os ingredientes que um Homem incomparável ensinou.
E estas são as ferramentas fundamentais para se cuidar da alma.
O demais é apenas secundário – quando não, delírios da mente humana que sempre ambiciona ter o poder de tudo curar.
(1) Termo espírita criado por Allan Kardec em O Livro dos Espíritos para designar o envoltório do ser espiritual que o liga ao corpo material. Em outras tradições filosóficas e religiosas, ele ganha outras denominações. Na Bíblia, por exemplo, vamos encontrá-lo em uma das epístolas de Paulo como sendo o corpo espiritual, o corpo incorruptível.
Leonardo Machado